Último texto
No momento, a situação nas calçadas de Copacabana está mais ou menos refletida neste diálogo de mil vozes:
— Ei, tira essa jardineira daí.
— Pra botar cano no lugar dela?
— Tira também o carro, ué.
— Pra botar aonde? Noutra calçada?
— Melhor deixar a jardineira e o carro, cada um na sua fatia de calçada.
— E o pedestre?
— Esse já foi tirado há muito tempo.
— E por que não o carro, a jardineira e o pedestre, com lugares marcados?
— Precisa deixar espaço pros carrinhos de bebê. Bebê ainda não é pedestre.
— Mas babá é.
— Então vamos repartir a calçada entre o carro, a jardineira, o pedestre, o bebê e a babá.
— Deixando uma área pras cadeiras dos bares de praia, no calçadão.
— Assim não dá. Só se houver revezamento.
— E meu pequinês, onde é que meu pequinês vai parar quando tiver necessidade?
— Afinal de contas, a calçada é ou não é do povo?
— Não. É dos bacanas que moram nos edifícios e não deixam a gente estacionar na calçada.
— Mas o cano também é dos bacanas.
— Só que de outros bacanas que não moram nos edifícios daquela calçada.
— Então é uma guerra entre bacanas.
— Eu não sou bacana. Sou povo e estou pagando meu carro financiado. Onde é que eu vou estacionar?
— Em cima das flores.
— O senhor parece que não gosta de flor. Prefere gasolina.
— Ora, meu amigo, quem gosta de flor plante elas no vaso, dentro de casa. Eu também gosto de música, mas não vou curtir meu som na calçada.
— A jardineira é medonha, o cano é funcional.
— Sem essa. O cano polui, e toda planta é legal.
— Bobagem, a Celurb apreender as jardineiras. Os próprios canos liquidam com elas.
— Se fosse só com as jardineiras. Um deles, em cima do passeio, mandou minha tia para o hospital.
— Eu não digo que calçada é muito perigoso? O mais seguro é não sair de casa, sob pretexto algum.
— É, mas cano na calçada tem uma vantagem. Não deixa bicicleta atacar. Bicicleta é fogo: olha só esta cicatriz na minha canela.
— Não estou interessado na sua canela. Quero saber é quem vence esta parada: a maquina ou o homem?
— A máquina também faz parte do homem, é prolongamento dele, do corpo dele. O homem está dos dois lados, brigando, chateando-se.
— Não terá um terceiro lado, o lado da paz?
— Tem sim, vovó. Tem a Praça da Paz, que fica em Ipanema.
— Engraçadinho. Vê lá se tem paz na Praça da Paz. Tem é cano.
Texto extraído do livro “Boca de luar”, Ed. Record – Rio de Janeiro (RJ), pág. 37.
O carro, a jardineira, a calçada
Carlos Drummond de Andrade
No momento, a situação nas calçadas de Copacabana está mais ou menos refletida neste diálogo de mil vozes:
— Ei, tira essa jardineira daí.
— Pra botar cano no lugar dela?
— Tira também o carro, ué.
— Pra botar aonde? Noutra calçada?
— Melhor deixar a jardineira e o carro, cada um na sua fatia de calçada.
— E o pedestre?
— Esse já foi tirado há muito tempo.
— E por que não o carro, a jardineira e o pedestre, com lugares marcados?
— Precisa deixar espaço pros carrinhos de bebê. Bebê ainda não é pedestre.
— Mas babá é.
— Então vamos repartir a calçada entre o carro, a jardineira, o pedestre, o bebê e a babá.
— Deixando uma área pras cadeiras dos bares de praia, no calçadão.
— Assim não dá. Só se houver revezamento.
— E meu pequinês, onde é que meu pequinês vai parar quando tiver necessidade?
— Afinal de contas, a calçada é ou não é do povo?
— Não. É dos bacanas que moram nos edifícios e não deixam a gente estacionar na calçada.
— Mas o cano também é dos bacanas.
— Só que de outros bacanas que não moram nos edifícios daquela calçada.
— Então é uma guerra entre bacanas.
— Eu não sou bacana. Sou povo e estou pagando meu carro financiado. Onde é que eu vou estacionar?
— Em cima das flores.
— O senhor parece que não gosta de flor. Prefere gasolina.
— Ora, meu amigo, quem gosta de flor plante elas no vaso, dentro de casa. Eu também gosto de música, mas não vou curtir meu som na calçada.
— A jardineira é medonha, o cano é funcional.
— Sem essa. O cano polui, e toda planta é legal.
— Bobagem, a Celurb apreender as jardineiras. Os próprios canos liquidam com elas.
— Se fosse só com as jardineiras. Um deles, em cima do passeio, mandou minha tia para o hospital.
— Eu não digo que calçada é muito perigoso? O mais seguro é não sair de casa, sob pretexto algum.
— É, mas cano na calçada tem uma vantagem. Não deixa bicicleta atacar. Bicicleta é fogo: olha só esta cicatriz na minha canela.
— Não estou interessado na sua canela. Quero saber é quem vence esta parada: a maquina ou o homem?
— A máquina também faz parte do homem, é prolongamento dele, do corpo dele. O homem está dos dois lados, brigando, chateando-se.
— Não terá um terceiro lado, o lado da paz?
— Tem sim, vovó. Tem a Praça da Paz, que fica em Ipanema.
— Engraçadinho. Vê lá se tem paz na Praça da Paz. Tem é cano.
— Viu? Foi a conta de fundir o Estado do Rio com o Rio, e carros de Barra do Piraí vem atochar nossas calçadas. Só carioca é que não tem direito.
— Separatista! As calçadas também devem ser fundidas!
— Ah, meu Deus! Eles estão roubando nossas jardineiras! Essas folhagens! Nossos miniespaços verdes!
— Numa hora dessas, com o rapa levando as jardineiras, médico nenhum é bobo de aparecer!
— As jardineiras estão impedindo o progresso do País!
— Amanhã plantarão bosques na calçada e botarão leões e tigres, jacarés e cascavéis lá dentro, pra devorar a gente!
— Sempre achei que esse negócio de flor na calçada é sabotagem contra a indústria automobilística nacional!
— Perdão, mas alecrim e espada-de-são-jorge são muito mais nacionais do que os automóveis fabricados por aí!
— Pelo visto, a confusão é geral.
— A confusão já era. Isto é a superconfusão.
— Qual, o Rio de Janeiro não existe.
— Agora é que você percebeu isso?
— Separatista! As calçadas também devem ser fundidas!
— Ah, meu Deus! Eles estão roubando nossas jardineiras! Essas folhagens! Nossos miniespaços verdes!
— Numa hora dessas, com o rapa levando as jardineiras, médico nenhum é bobo de aparecer!
— As jardineiras estão impedindo o progresso do País!
— Amanhã plantarão bosques na calçada e botarão leões e tigres, jacarés e cascavéis lá dentro, pra devorar a gente!
— Sempre achei que esse negócio de flor na calçada é sabotagem contra a indústria automobilística nacional!
— Perdão, mas alecrim e espada-de-são-jorge são muito mais nacionais do que os automóveis fabricados por aí!
— Pelo visto, a confusão é geral.
— A confusão já era. Isto é a superconfusão.
— Qual, o Rio de Janeiro não existe.
— Agora é que você percebeu isso?
Texto extraído do livro “Boca de luar”, Ed. Record – Rio de Janeiro (RJ), pág. 37.
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